Aborto Legal

Você sabia que existem situações em que a interrupção da gravidez é legalizada e deve ser garantida pelos governos e municípios? 

 Essas situações são:

  1. Em caso de gestação decorrente de violência sexual (conforme o art. 128, II, do Código Penal)
  2. Em caso de risco de vida da pessoa gestante  (conforme o art. 128, I, do Código Penal)
  3. Em caso de gestação de fetos anencéfalos (conforme definido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54). 

Ainda que esse seja um direito previsto em lei, infelizmente, as pessoas enfrentam barreiras diversas para interromper a gestação nos serviços de saúde no Brasil.

Dados oficiais mostram que foram realizados cerca de 1.600 abortos previstos em lei, por ano, entre 2008 e 2015, no Brasil(Cardoso; Vieira; Saraceni, 2020). Mesmo com a previsão legal desde 1940, apenas em 1989, por meio da Portaria Municipal nº 692 de 1989, o Município de São Paulo passou a oferecer o procedimento no Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro Saboya, o primeiro serviço de aborto legal inaugurado no país.

A lei brasileira não estabelece prazo máximo para a realização do procedimento de interrupção da gravidez. No entanto, são poucos os estabelecimentos que realizam abortos em gestação com mais de 22 semanas (Rosas; Paro, 2021).

Por que as mudanças da
Lei n. 12.015/2009 foram importantes?

Até 2009, por exemplo, o crime de estupro e o crime de atentado violento ao pudor dependiam da verificação da existência de penetração na relação sexual não consentida. Além disso, o crime de estupro só poderia ser cometido contra mulheres.

A grande mudança, no entanto, ocorreu em 2018, quando foi sancionada a Lei 13.718/2018 (conhecida como Lei da Reforma dos Crimes Sexuais), que alterou uma série de dispositivos do Código Penal com relação aos crimes sexuais. Mudanças importantes, por exemplo, foram o reconhecimento de crimes sexuais como "crimes contra a dignidade sexual", e não mais como "crimes contra os costumes" e a determinação de que crimes sexuais, dada a sua gravidade, serão processados independentemente do desejo da vítima. 

Nessa mesma lei, atualizou-se o crime de violência sexual mediante fraude, que passou a ser definido como qualquer ato libidinoso praticado mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.

Mas por que entender essas
mudanças é importante?

A possibilidade de interrupção da gestação está presente no Código Penal desde 1940, época em que o conceito de estupro era bastante restrito e em que os crimes contra dignidade sexual, antes chamados de crimes contra os costumes, tinham apenas como objetivo proteger a honra da família.

A luta do movimento de mulheres, somada a um maior reconhecimento de seus direitos humanos, resultou nas modificações legais de 2009, 2012 e 2018, que ampliaram o conceito de estupro e incluíram novos crimes ao capítulo de crimes contra a dignidade sexual.

Portanto, é necessário atualizar o conceito de estupro previsto no Código Penal para essa interpretação mais moderna e alinhada com os direitos humanos, entendendo-se que a interrupção da gestação pode ser realizada quando houver qualquer forma de violência sexual.

O que os dados sobre violência nos mostram?

No Brasil, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023 apresenta, em relação a 2021 e 2022, um aumento expressivo do número de estupros. A maior incidência do crime na série histórica, desde 2011, ocorreu em 2022, com um número absoluto de 74.930 estupros. Destes casos, 75,8% são de estupro de vulnerável, ou seja, envolvem pessoas menores de 14 anos ou incapazes de consentir ao momento do ato. As vítimas são, em sua maioria, mulheres e meninas (80%). Esses números se refletem em São Paulo, onde o Estado de São Paulo concentra 14,5 mil desses casos, sendo que 73% desses casos ocorreram dentro de casa. 

No entanto, ainda que assustadores, esses números podem ser ainda maiores. Os dados produzidos pelo Anuário de Segurança Pública levam em consideração apenas os casos denunciados às autoridades policiais, desconsiderando todas as situações em que as pessoas optaram por não denunciar. E sabemos que são poucos os casos que são efetivamente denunciados.

Segundo o  Atlas da Violência (Cerqueira; Bueno, 2023), estima-se que ocorram 822 mil casos de estupro por ano no Brasil, dos quais apenas 8,5% chegam ao conhecimento da polícia e apenas 4,2% são notificados ao sistema de saúde -  o que mostra o impacto do estigma relacionado ao tema e à própria cultura do estupro. 

O abismo entre a quantidade de casos de estupro e o número de abortos realizados

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2011, no Brasil, o número de estupros notificados no SINAN foi de 12.087 casos, e o percentual de gravidez decorrente desta violência foi de 7,1%, independentemente da idade da vítima. Já se considerarmos a faixa etária entre 14 e 17 anos, esse percentual sobe para 15%. Ainda no período entre 2011 e 2015, de acordo com o Sistema Nacional de Nascidos Vivos (SINASC), 31.611 meninas de até 13 anos tiveram filhos e apenas 1.273 (4%) foram notificados como estupro em meninas abaixo dos 14 anos (Souto et al., 2017). 

De outro lado, segundo o DATASUS, apenas 48 abortos legais foram realizados no mesmo período nesta faixa etária, o que demonstra o enorme descompasso entre os casos notificados e o acesso ao direito ao aborto legal.  

Os dados do Mapa refletem o que se verifica no panorama nacional: o número de abortos legais realizados pelos serviços de saúde é extremamente reduzido e insuficiente para a demanda existente.

Referências

CARDOSO, B. B.; VIEIRA, F. M. DOS S. B.; SARACENI, V.. Aborto no Brasil: o que  dizem os dados oficiais?. Cadernos de Saúde Pública, [S.L.], v. 36, jan. 2020. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/01002-311x00188718.

SANTOS, D. L. A.. Mulheres na busca pelo aborto legal: rota crítica percorrida e necessidades em saúde suscitadas. Tese (Doutorado). Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2019.

ROSAS, C. F.; PARO, H. B. M. Da S.. Serviços de atenção ao aborto previsto em lei: desafios e agenda no Brasil. Cfemea/ SPW, 2021.

CERQUEIRA, D.; BUENO, S. (coord.). Atlas da violência 2023. Brasília: Ipea; FBSP, 2023. DOI: https://dx.doi.org/10.38116/riatlasdaviolencia2023.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

SOUTO, R. M. C. V. et al.. Estupro e gravidez de meninas de até 13 anos no Brasil: características e implicações na saúde gestacional, parto e nascimento. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 9, p. 2909–2918, 2017